Entre barricadas e boletins: estratégias potiguaras de enfrentamento à COVID-19 no litoral norte da Paraíba

Entre barricadas e boletins: estratégias potiguaras de enfrentamento à COVID-19 no litoral norte da Paraíba

por Thayná Donato Gomes e Tanielson Rodrigues da Silva (Poran Potiguara)
31 Agosto 2021
Nota de Pesquisa

Organização e edição da entrevista por Estevão Martins Palitot, Lara Erendira Almeida de Andrade e Paulidayane Cavalcanti de Lima

Introdução dos organizadores

        Nós, da equipe de pesquisa da região Nordeste da PARI-c, temos nos dedicado a pensar a produção de informações sobre a situação dos territórios indígenas nessa região, realizada por redes que articulam movimentos indígenas, organizações da sociedade civil e universidades, como uma ferramenta de controle social e participação política em tempos de pandemia. Nesta nota de campo, contando com a colaboração do professor Estevão Palitot, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), compartilhamos um extrato de nossas navegações.

        Thayná Donato – uma de nossas pesquisadoras e recém-graduada em antropologia pela UFPB – conduz uma entrevista, realizada em março de 2021, com Tanielson Rodrigues da Silva, conhecido como Poran, formado em Engenharia Florestal pela Universidade Nacional de Brasília (UNB).

         Nesta instigante interlocução entre dois jovens potiguaras, a pesquisadora nos leva a acompanhar as formas através das quais esse povo atuou para combater a chegada do novo coronavírus em seu território: desde a criação de barricadas independentes em aldeias locais; a articulação entre todas as aldeias pelo conselho de lideranças do povo; até a formação de redes ainda mais amplas que envolveram atores da universidade e estudantes indígenas no Observatório Antropológico: Mapeamento e fortalecimento das ações de combate ao COVID 19.

        O povo Potiguara tem uma das maiores populações indígenas no país, contando com mais de 20 mil pessoas, e com três Terras Indígenas (TIs) que abrangem 32 aldeias situadas nos municípios de Baía da Traição, Marcação e Rio Tinto, no litoral norte da Paraíba.

Entrevista de Thayná Donato com Poran Potiguara 

Gostaria de começar a entrevista com você contando como o povo Potiguara recebeu a notícia da pandemia e quais foram as estratégias adotadas para combatê-la.

A pandemia afetou o nosso povo assim como todo o Brasil. Deixou todo mundo assustado. Tivemos muito medo do que estava por vir e como afetaria as nossas comunidades. Assim que começou a pandemia no Brasil, em fevereiro, e aqui na Paraíba em março, começamos a fechar as aldeias, e esse fechar as aldeias incluiu justamente impedir o acesso de não indígenas e não residentes dentro das aldeias potiguara.

Um primeiro movimento de estratégia foi que o Conselho de Liderança dos Indígenas Potiguara das 32 aldeias começou a se reunir toda terça-feira para decidir as regras e medidas de prevenção que seriam adotadas na respectiva semana. Dessa forma, o Conselho acabou agindo como um comitê de crise. Nos reuníamos junto ao pessoal das barricadas, dos bloqueios, para pensar em normas, em estratégias de como fazer e manter o isolamento social, de como evitar aglomerações, de como manter o pessoal suspeito em quarentena, de como evitar que houvesse esse fluxo dentro de nossas aldeias, o fluxo de pessoas – sendo elas indígenas ou não.

Além disso, buscávamos medidas para obter recursos e itens de prevenção, como máscaras, álcool em gel etc. e de como exigir da própria Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) atendimentos mais efetivos voltados para a COVID-19.

Você poderia contar melhor como funcionou cada uma dessas iniciativas? Por exemplo, como era a dinâmica do “comitê de crise”?

O comitê de crise tomava decisões para todas as aldeias, atuava junto à Fundação Nacional do Índio (FUNAI), com as prefeituras das cidades do território – nesse caso, Baía da Traição, Marcação e Rio Tinto. Todas eram convidadas. Também buscamos dialogar com a Polícia Militar, para que pudéssemos recorrer a ela em caso de necessidade de intervenção nas aglomerações ou coisa parecida.

Nas reuniões semanais, tínhamos como pauta a COVID-19, os atendimentos, como lidar com os casos suspeitos, como manter o pessoal isolado, e sobre o funcionamento dos bloqueios. Nessas ocasiões, todos utilizavam máscaras, tínhamos horários limitado, não ultrapassando mais de uma hora e meia, e buscamos seguir sempre as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS).

As barreiras sanitárias tiveram grande importância em diversos povos – como medida de prevenção, controle e até de comunicação com a comunidade. Como elas funcionaram nas Terras Indígenas potiguara?

As barreiras sanitárias ou bloqueios, que aqui chamamos de barricadas, tiveram início na minha aldeia nos finais de semana. Tivemos a ideia de impedir o acesso de turistas, ainda quando o território estava aberto, isso no final de março de 2020. Depois, soubemos que outras aldeias estavam fazendo o mesmo, como a aldeia Tramataia, a aldeia Camurupim, com o objetivo de impedir o acesso de turistas e não residentes. Chegamos a ter 23 barricadas no ápice do fechamento.


Mapa elaborado pelos professores Estevão Martins Palitot e Anderson Alves, e pelos estudantes Bruno Rodrigues da Silva e Liliane Monteiro Barbosa no contexto das ações de monitoramento da COVID-19 entre os povos indígenas na Paraíba, realizados pelo Horizontes da Ecologia e PET – Indígena Potiguara | UFPB-Campus IV.

As barricadas foram se tornando uma importante medida de prevenção dentro do próprio povo, e eram realizadas de acordo com as possibilidades de cada aldeia. Tinha comunidade que não tinha barreira, mas bloqueio com cajueiros derrubados na estrada. Outros cavaram buracos na estrada para não passar carro, não passar nada. Dessa forma, conseguimos controlar o acesso. As barricadas funcionavam, por exemplo, como um controle mais efetivo do que só o controle de higienizar carros. Elas bloquearam o acesso [para] dentro das aldeias do território e a possível contaminação.

Funcionaram por cerca de três meses, quase 24 horas por dia! Com o tempo, o controle feito por elas passou a não ser apenas de acesso, mas também o controle das pessoas que iam para a cidade. Começamos a orientar as pessoas que iam para a cidade sobre o uso da máscara, informando sobre os cuidados. Dizíamos: “Só passa com máscaras, vamos nos prevenir, vamos ser conscientes, vamos nos preocupar com nossa comunidade!”.

A barricada deixou de ser um ponto apenas de controle e passou a ser também um local de informação para a comunidade. Fazíamos a fiscalização, pedíamos para que as pessoas utilizassem o material de proteção individual, tentamos conscientizá-las nos momentos mais críticos da COVID-19 em nosso território. E em alguns momentos também tivemos a presença da equipe de saúde na tenda dos bloqueios, que orientava o pessoal a usar máscaras, a se higienizar.

Como você avalia a importância das barricadas nesse período mais crítico?

Os bloqueios nas aldeias foram fundamentais. Do meu ponto de vista, deram muito certo. Apesar do alto número de casos em Potiguara, eu acredito que teria sido muito pior se tivesse ficado tudo aberto, se não tivessem existido esses bloqueios dentro das comunidades.

Foi um período também no qual houve a paralisação das aulas e apenas permaneceu funcionando o que era essencial. Nisso, a meu ver, a COVID-19 atingiu nosso povo de uma forma muito bruta. Estávamos programando a festividade de abril, já que fechamos tudo em março, mas não pudemos realizar. Ficamos então seis meses sem realizar um ritual, e isso para qualquer povo é muito doloroso, traz muito sofrer.

Junto a essa situação, que foi diferente de tudo que já vivemos, os bloqueios causaram muita tensão. Nós tivemos medo de deixar os parentes de fora da aldeia entrar, com medo de que houvesse um grande contágio. Nesse tempo, tinham parentes que queriam visitar as suas famílias e foram muitas vezes impedidos, como foi o caso da Aldeia Brejinho. Mas, apesar da dificuldade, acreditávamos que isso era necessário. Percebíamos que as pessoas que não moravam na aldeia acreditavam que o vírus não chegaria nos interiores, e com isso estávamos correndo um sério risco.

Outra coisa importante sobre as barricadas foi o fato de que elas se tornaram um ponto de referência para informar os casos suspeitos. Quando alguém da comunidade sabia sobre outra pessoa com sintomas gripais, em muitos casos, no lugar de procurar a equipe de saúde, a pessoa chegava na barricada e falava: “olha, fulano de tal está com síndrome gripal, está com febre, está com diarreia, está tossindo muito, está com coriza, então ele não pode passar aqui na barricada”. No início, ficávamos sem saber muito o que fazer, mas passamos a informar de imediato sobre os casos suspeitos na aldeia ao pessoal das equipes de saúde: técnicos de enfermagem, agentes de saúde ou aos médicos de plantão.

Logo, o funcionamento das barricadas regulava a entrada e saída das pessoas, informava as medidas de prevenção, e, por fim, também se tornou um meio de informar as equipes de saúde sobre as pessoas com suspeita de COVID-19.

Esse período foi bem difícil para as famílias que dependiam desse fluxo externo de pessoas, por exemplo, o turismo é uma atividade da qual muitas pessoas dependem. Fale para a gente como ficou isso.

Além dos impactos na saúde e no cotidiano da nossa comunidade, tivemos também o impacto ligado diretamente ao lado econômico, como o exemplo do turismo. Com o fechamento de tudo, o turismo parou e muita gente dependia dele. No período de fechamento do acesso turístico, fecharam os bares, restaurantes, paralisou a venda de artesanato, pois tudo isso dependia da recepção de não indígenas. Sem poder exercer essas atividades durante o bloqueio, ficamos à mercê, nesse movimento de incerteza.

As pessoas ficaram sem renda para sobreviver nesse período pandêmico. Muitos tiveram que se reinventar, se virar, ficaram dependendo de cesta básica da FUNAI. As cestas chegavam esporadicamente, a cada dois ou três meses, não era algo semanal. Isso foi bem difícil. Aqueles que têm filhos começaram a receber das escolas as merendas em forma de kit, um kit alimentação. Isso foi o que segurou a alimentação dessas famílias no período mais crítico. Fora isso, o auxílio emergencial foi a salvação para muitas das comunidades. Sem ele, ficaria ainda mais difícil paralisar as atividades, o que poderia acarretar maior número de casos, e a gente ia ficar nessa indecisão de não fechar pelo lado econômico.

Apesar do fechamento ter um impacto negativo financeiramente, se pensarmos pelo lado da saúde, pelo lado da proteção, de ter sido evitado maior número de contágios, não ter esse fluxo de turismo nas Terras Indígenas foi algo positivo para nós. O nosso povo potiguara vive numa área totalmente turística, todas as aldeias têm praias, rios, lagoas. Com o turismo, estaríamos ainda mais expostos ao vírus.

Quando deixamos de fechar as aldeias, no final de julho de 2020, começamos a ter a presença turística dentro das comunidades e aí ficamos naquele dilema, notamos que apesar das recomendações – como a obrigatoriedade de uso de máscaras nos estabelecimentos comerciais e nos espaços públicos – nem todos estavam cumprindo. Nas próprias aldeias, os cuidados estavam variando, eu particularmente não vi todos os donos de bares, restaurantes, e o pessoal que vende artesanato, que são Potiguara, fazendo uso da máscara todo o tempo. Além disso, nos deparamos com o turista que não quer fazer uso da máscara.

Nós vimos que você foi bem ativo: não só participando dessas reuniões do Conselho de Lideranças, que você disse que atuou como um comitê da crise, mas também juntando-se às barricadas. Além disso, outra forma de atuação foi na parceria com o Observatório Antropológico, com dados sobre as populações indígenas da Paraíba. Você poderia nos dizer como se inseriu nesse processo e como funcionava essa rede de produção de boletins?

Eu me inseri na equipe do Observatório Antropológico quando passei a acompanhar os dados da COVID-19 aqui na comunidade. Principalmente por estar envolvido com as barricadas, a partir delas percebi que muitas pessoas não entravam para as estatísticas dos boletins oficiais – seja por recusar-se a fazer teste, seja por não ser atendida pelas equipes da SESAI. Então comecei a tentar entender o caminho que o vírus ia percorrer, queria acompanhar como o vírus ia se comportar na aldeia.

Isso me levou a buscar contato com alguns professores, principalmente o Estêvão Palitot, da UFPB. Ele, naquele momento, estava desenvolvendo um mapeamento, acompanhando como o coronavírus se comportava. Logo, resolvemos juntar as informações. Ele recebia informações da Secretária Especial de Saúde Indígena e eu recebia dos municípios. A partir disso, discutíamos os dados, observando quais aldeias tiveram confirmação [de casos de COVID-19] pela SESAI, quais aldeias tiveram confirmação pelo município, e juntávamos com as informações que chegavam diretamente por meio dos parentes nas barricadas ou por mensagens. Algumas pessoas [contaminadas] não entraram nem nos dados da SESAI, nem do município.

Por exemplo, tivemos um caso na aldeia Grupiúna de Cima ou Grupiúna dos Cândidos. Nesse caso, um rapaz chegou a ser internado, mas não chegou a ser intubado, e mesmo com a gravidade, ele não entrou em nenhuma contagem. Outros casos, sabíamos de contaminações nas aldeias que nos boletins oficiais (SESAI e municípios) não aparecia ninguém contabilizado, e lá teve, inclusive, o caso de uma pessoa que quase veio a óbito.

Esse desencontro de dados gerava muita incerteza e confusão. Buscar esclarecer isso foi um dos motivos que me levou a entrar como colaborador no Observatório de Antropologia. Por meio dele, além fazer o acompanhamento dos dados, conseguimos também parceria com uma universidade da França, com a parceria de duas outras professoras também da UFPB, Rita Santos e Patrícia Pinheiro, para a produção de máscaras em quatro aldeias diferentes. As máscaras foram distribuídas em algumas aldeias, especialmente pela Comissão das Mulheres Potiguara, que esteve mais à frente disso, uma articulação do projeto do Observatório.

O maior desafio da coleta de informações para a organização dos boletins se deu pela incerteza dos dados. Como já citei, a SESAI divulgava um dado, o município divulgava outro, e nós percebíamos que, além dessas diferenças nos boletins oficiais, ainda havia o fato de que muita gente resistia em fazer os testes, mesmo estando contaminada.

Além disso, a SESAI trabalha só com indígenas aldeados e cadastrados no seu sistema, e quando houve a pandemia, esse momento de parada das atividades, muitas pessoas que moravam fora, nas capitais e municípios dos arredores, retornaram para viver nas aldeias. Essas pessoas não estavam dentro dos cadastrados da SESAI, o que gerou mais uma confusão em relação aos dados, sobre a quantidade de indígenas infectados nesses municípios e nas próprias aldeias.

Por exemplo, aqui na Terra Indígena Potiguara Monte-Mór, a gente contava trezentos [casos] confirmados, mas para a SESAI não tinha nenhum indígena contaminado, pois esses casos não eram contabilizados como indígenas pela SESAI. Também teve o caso de um Xucuru que morreu em Monte-Mór e nunca entrou nos dados como indígena, mas todo mundo sabia que era Xucuru.

Essas informações chegavam a mim através do WhatsApp, como muita gente mora lá e me conhece, me passava esses dados por mensagem. Eu contabilizava no boletim o total de casos nas aldeias.

Os casos de Monte-Mór e Akajutibiró foram exemplos de confusão gerada pelo desencontro de dados. Logo, reconheço que a maior dificuldade foi a não sistematização dos dados por aqueles que disponibilizavam essas informações. Se alguém com um pouco de conhecimento sobre estatística estivesse elaborando os boletins oficiais do Estado (SESAI e/ou prefeituras) seria muito mais fácil chegar a dados mais precisos, por exemplo, por meio de um boletim único com base em uma tabela semanal.

Ao contrário, se mantiveram elaborando diversos boletins nos quais as informações sequer se cruzavam, e isso gerou ainda mais dúvidas nas comunidades. A situação se tornou tão complicada que tiveram pessoas que me acusaram de querer “aparecer”, por estar questionando os dados e buscando os esclarecer. Não só para mim, mas para todos os Potiguara essa confusão de dados foi muito complicada, as pessoas falavam assim: “Ah, não! Mas pela SESAI só temos três confirmados”, aí o município divulgava que eram 15. Aí ficava nessa: “quem está mentindo, quem tá falando a verdade?”.

Com os entraves provenientes das campanhas eleitorais, nossos acompanhamentos paralisaram, os boletins não foram mais divulgados, e a nossa fonte de dados ficou sem ser alimentada. Diante disso, nosso mapa não conseguiu avançar depois de agosto [de 2020].

Observatório Antropológico: Mapeamento e fortalecimento das ações de combate à COVID-19 reúne pesquisadores na área de ciências humanas (ciências sociais, antropologia, cinema, educação no campo) da UFPB e outras parceiras. Entre maio e agosto de 2020, ele produziu onze boletins sobre a situação da pandemia no estado da Paraíba. Estiveram envolvidos na produção dos boletins os seguintes grupos de pesquisa e extensão: Programa de Educação Tutorial Indígena Potiguara; Projeto Horizontes da Ecologia; Laboratório de Antropologia, Política e Comunicação (LAPA). Eles podem ser acessados nas redes sociais do projeto e do Programa de Educação Tutorial (PET) Indígena Potiguara UFPB-Campus IV.

O Informativo Potiguara: COVID-19 foi elaborado por Poran Potiguara e pode ser conferido na página do Facebook: Boletim COVID-19 Potiguara – PB

Revisada e editorada por Daniela Perutti

 

Como citar: Gomes, Thayná Donato e Silva, Tanielson Rodrigues. Entre barricadas e boletins: estratégias potiguaras de enfrentamento à COVID-19 no litoral norte da Paraíba. Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à COVID-19, vol. 1, n. 7, ago. 2021. Disponível em www.pari-c.org. Acesso em dd/mm/aaaa.



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